quarta-feira, 9 de março de 2016

Nós Sonhamos, Existimos.


É tão frequente esquecer-me do que sonhei quanto as vezes que me esqueço de ser feliz. Duas coisas que gosto verdadeiramente: Sonhar e ser feliz. Não basta uma para a outra acontecer – todos o sabemos – mas perdoem-me o cliché, “sonhar não custa”. E hoje o meu prorrogou-se no dia, não me esqueci dele.

O sonho não é só um sonho. É uma manifestação esquizofrénica do subconsciente, um desejo a pedir para existir. Raramente fazem sentido, mas o Homem nunca faz tanto sentido como quando sonha. Porque é mais honesto quando o faz, quando o egoísmo e o mal não coexistem, quando a realidade não é escamoteada pelas vicissitudes contemporâneas do Mundo, quando os ouvidos são moucos e o coração tagarela. Somos nós, em estado puro.

De pé, deitado, acordado ou a dormir, já sonhei muito. Já imaginei pessoas, cenários mirabolantes, poesia e amor, amor sem poetas e sensações extraordinariamente antagónicas. Também já acordei em sobressalto beliscando o braço para convencer-me que era só um pesadelo. Mas foram poucas as vezes que o sonhado se ajusta tão justamente à realidade da minha bolha. Desta vez não acordei, deixei fluir o desespero.

E fez-me pensar. Se partilho a ira do personagem (eu, quem sabe), não há como lutar. Dar asas à resiliência que mora em mim antes de ser tarde e a realidade não ser mais imaginada. Sonhar-te ali, sem mim e com quem não te queria ver, tocou as campainhas do medo. O riso despido, o ar tonto, a volúpia da voz, o olhar túmido, a ingenuidade meiga, o toque leve, desse leve espírito. O resvalo nessa quase-perfeição polarizada fez-me ver que saíste de um sonho meu, foste sonhada. Quando estava bem acordado.

Isto não foi um pesadelo, foi um abre-olhos.



quarta-feira, 2 de março de 2016

Ensopado de Gustavo Santos (Um Obrigado Camuflado)


Parvo. Ontem fiz anos e pensava que ia ter um dia diferente. Os dias de aniversários esgotantes ficaram na infância e perderam-se nas gerações. A bolha em que vivemos não nos permite meter o pé em ramo verde e já se vê a parabenização como uma obrigação diária – “Ora deixa cá ver a quem é que tenho de dar os parabéns hoje” – A tarefa simplificou-se com as redes sociais que por um lado lembram os mais esquecidos, mas que por outro promovem uma construção de irrealidades gritantes. Deixamo-nos envolver, porque um dia somos nós, e ontem fui eu. E sabe bem ter um dia só nosso, emergir da bruma e perceber que ainda há quem goste de nós. O meu dia não foi especialmente bom, vi coisas que preferia não ver, perdi um jogo de futebol e deitei-me tarde, cansado.

A sagacidade das espécies evoluiu no sentido da busca incessante da felicidade. Por conseguinte, a resolução de problemas é o método para ser atingida. Os meus problemas são necessariamente diferentes do resto do Mundo, seja ele ocidental ou não. Foi cansado, no sofá a ver televisão que vi uma notícia sobre a possibilidade real de Donald Trump se tornar presidente Americano e um documentário sobre o flagelo do Cancro. Aparentemente tem pouco em comum, e nem Trump com cancro seria elo de ligação aqui. Pergunto-me se não serão as vidas de quem tem cancro e respectivos familiares bem piores que a minha? Não estarão os Estados Unidos a afundar-se no meio do pacífico se elegerem Trump? Não será melhor a minha vida do que todos os futuros repatriados? Se for eleito, e enquanto as políticas extremistas de direita não incomodarem este cantinho à beira-mar plantado, a minha vida será boa. E continuará boa enquanto família e amigos, esses que importam, permanecerem ao meu lado. E boa não é ser feliz, é tentar ser menos angustiado, sentir-me menos derrotado por esta bolha viciada. Estes aniversários, que já só celebram o afastamento dos melhores anos, acabam invariavelmente em reflexões pessoais. Quantas pessoas já fiz rir, quantas pessoas já fiz chorar? Já fiz alguém feliz, já fiz alguém verter lágrimas, de emoção ou tristeza? Poucas, algumas ou muitas vezes? Vivo para mim ou vivo dos que gosto? Já fiz alguma coisa relevante para o Mundo? O eco destas perguntas propaga-se infinitamente nos espaços mais moribundos do cérebro e do coração. Hemingway escreveu que raros são os inteligentes felizes. É a verdade mais absoluta do Mundo, mas essa é a volúpia da vida, a pornografia de estarmos vivos. Um obrigado muito sentido a todos os amigos e família, um obrigado inevitavelmente menos sentido aos simpáticos que, mesmo na condição de meros conhecidos, se esforçaram por fazer mais uma pessoa feliz, e parabéns aos que se contiveram e não cederam à pressão de parabenizar alguém que só sabem quem é. Obrigado a todos, estou um dia mais velho.