Esta história de um rapaz começa com a história de um rapaz.
O sol tinha caído abruptamente no meio de todos aqueles prédios e o rapaz,
aborrecido da monotonia daquele terceiro andar, decidiu ir correr, livre como
um pássaro. Sem horas, sem telemóvel, nem gerigonças musicais. Consumiu a
música das buzinas, dos travões e dos aviões. Cruzou-se com pessoas que nunca
tinha visto, sentiu que era rei em terras de ninguém. Mas depois sentiu-se só e
pensou:
Tanta gente e tanta solidão. As cidades tornaram-se antros
de solidão. Os fantasmas seguem incólumes sem o peso do isolamento que dá asas
a toda esta impessoalidade. A poeira fica no rasto do sem vagar, do stress sem
tempo para parar, nem para cumprimentar. Alocamo-nos confortavelmente em
estruturas que barram o som, a cólera das tempestades e as trivialidades desta
sociedade frívola e, por isso, insistimos no receio de deixá-las. Vivemos em
cidades velhas ainda com tanto por explorar, com gente por conhecer. Ficamos
sempre. Ficamos sempre na penumbra de tudo o que nos impede de quebrar
barreiras e expandir fronteiras. Não nascemos assim. A selvajaria corre-nos nas
veias.
Esta roda-viva alternante de emoções conduz-me à decadência.
É o perigo de viver neste tecto falso de sentimentos, que nos desgraça a graça.
Porém, no caos desta redoma nem tudo é tóxico. Aquilo que não consegui, o que
não tenho e o que já perdi, tudo isso é motor para novas aventuras. Em última
instância, excelentes oportunidades para falhar novamente.
Porque é essa matéria que a vida consome: insucesso. Cabe a
quem dele sofre escolher o modo para lidar com ele. Ou propaga novas dinâmicas ou
é droga que empata e esquenta as emoções do momento, da vingança e da vontade
de passar por cima do insucesso. Só assim faz sentido a condição humana, toda
ela puramente instintiva. Somos tudo aquilo por que lutamos e não o que
conseguimos, porque depois de tudo conquistado, nada restará. Antes, o vazio do
ócio – irrefutável - de quem já tudo tem.
A vida não me assusta nem um pouco. Assusta-me a falta dela,
dos cheiros, das tristezas e das alegrias, de sentir tudo tão profundamente,
quando assim calha, e de outras vezes passar-me tudo tão ao lado, como se
tivesse acabado de acordar. Rendo-me totalmente à aventura como átomo principal
de tudo. Do querer mais, do choro e do riso, arriscar, e arriscar o que for
preciso, intrepidamente. Deambulo no pragmatismo do ateísmo, no destino traçado
pela luta e no amor como sentimento mais carente do risco. Porque ele é tudo. O
amor pela família, pelos amigos, pelo amante, por todos os “eu” que vagueiam em
palacetes ou em ruas frias cobertas de cartão. Acreditar no agora, perspetivando
o futuro, com dicas do passado, mas viver o que nos rodeia, intensamente, todos
os dias. Sejam lírios, café, sexo ou miséria. Interessa muito? Interessa mais
viver intensamente, com todas as energias que acumulamos e não gastamos a não
fazer nada. Já alguém dizia, sem precisar, que nele carregava todos os sonhos
do Mundo. Quem não? Quem não tem vontade de ser artista de meia-tigela e
treinador de bancada? Não fossem os filmes idílicos e a vida seria muito
melhor. Mas nós gostamos de tentar parecer e às vezes até parecemos mesmo. Sem
saber ler nem escrever.
E é preciso ler mais para escrever mais. Arremessar no papel
todas as palavras que não conseguimos dizer, porque têm de sair. Devíamos ser
todos escritores, na poesia ou na prosa, nos contos infantis, nos desenhos ou
nos gestos. Escrever com o coração, reduzir a razão à mesma insignificância que
ela nos reduz quando erramos por pensar demais, quando nos arrependemos por não
tentarmos. Por não tentarmos sequer. Aquele beijo que podia ter sido tudo e nem
beijo foi.
A corrida acabou e enquanto correu, enquanto lutou contra
ele e contra todos, não pensou nela, na loira de sorriso rasgado. Mais uma vez,
esteve perto de esquecê-la.