terça-feira, 10 de julho de 2018

Airosas saídas do amor são falácias



O tempo cura tudo, mas até o tempo leva tempo. Todos os dias vira-se uma página de um livro que parece não ter fim, mas que tem. É só um calhamaço espinhoso, repleto de palavrões, que ora são insultos, ora foram elogios e que, para a vida toda, friso, para a vida toda serão, dolorosamente, apenas memórias. E se a teoria dos românticos crentes na vida depois da morte estiver certa, elas perdurarão infinitamente no tempo.

Não há dias fáceis, há dias menos difíceis. Há dias em que a saudade se acerca com uma força desmesurada. Tentar nunca deixou de ser uma opção, mas há tentações que nos beijam em vão. E sei-lo desde o principio do fim que as tentações se tornariam maiores, mais fortes, mais persistentes, porém, inúteis.

Dizem que desistir de tentar – dois conceitos tão antagónicos – é o medo de falhar, mas há falhar e ser falhado. Há razão e percepção. E queria muito, não há nada que neste momento quisesse mais, se não lutar. Ir à luta e lutar, não por aquilo que me pertence, mas por a quem eu pertenço. Com muita pena, o abismo mora ao fundo da rua e não há tristeza maior em saber que essa rua só se percorre a descer.

Há duas coisas que me irritam nos filmes de domingo à tarde. Os finais felizes, porque deturpam a realidade, e aquele vai-não-vai de escada a meio das histórias em que há sempre alguma coisa a comprometer o amor das personagens principais. Invariavelmente acabam juntos, mas em certa altura vão estar separados, mesmo que a sua paixão perdure. Durante muito tempo pensei que fosse mais um ingrediente necessário à trama para prender as pessoas no cinema. Hoje, ao contrário dos finais felizes, sei que pode acontecer.

A razão para a saudade, palavra tão-só portuguesa pela depressão associada, também se perde no meios de tantos pensamentos desconexos. Será apenas a saudade de um tempo que já passou ou é saudade de quem nos faz ter saudade desse tempo? Em todo o caso, será o tempo, esse desgraçado, que vai matar e reduzir a memórias a paixão mais intensa que já se viveu. A nossa.



quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Voar é diferente de bater as asas



Deve ser possível morrer de tristeza. Já deve ter acontecido. Imagine-se o caso em que a solidão se junta com o desgosto. Os animais morrem de tristeza, eu sei. Tive, em tempos, um casal de periquitos numa gaiola em minha casa. Certo dia, a minha avó, com a mania das limpezas, mexeu na gaiola e deixou fugir um. Não sei se era o periquito macho ou o periquito fêmea, na verdade nunca consegui distingui-los.

Dei-lhes nomes mas não me lembro quais. Sei que eram azuis e cantavam quando estavam ao sol. Quando estava em casa ao fim-de-semana, o meu pai mudava-os para um sítio ao sol, exclusivamente preparado para eles, e voltava a colocá-los no mesmo sítio ao final do dia.

Os passarinhos foram-me oferecidos por a minha outra avó, e eu fiquei responsável por cuidar deles, tendo acabado o meu pai a tratar deles todos os dias. Mudava a água e enchia o recipiente da comida. Chegamos a comprar um ninho, onde puseram várioovos, mas que nunca viu nascer nenhum periquito - quanta infelicidade terá sido para eles

Pode ter sido de velhice, já viviam naquela gaiola - que já era a segunda - há alguns anos, mas o que ficou morreu pouco tempo depois. Digam-me que foi da idade, mas a mim ninguém me tira a ideia de que aquele periquito/a não quis viver mais. Agastou-se com a solidão e acabou por morrer de tristeza. Os animais morrem de tristeza.

Inquieta-me, porém, a razão para ter fugido. Tinha comida, água, amor e a liberdade foi uma coisa que nunca conhecera. Os ferros brancos da gaiola eram os limites do seu mundo. Foi, por ventura, um acto irreflectido, pelo qual mais tarde se veio a arrepender. Quero acreditar que tentou voltar mas não conseguiu. É que o caminho de voltar não era igual ao que o levou da gaiola para fora. Terá acabado por morrer como consequência de não saber viver livre. Duas mortes que deviam ter sido engaioladas até à velhice.



quarta-feira, 24 de maio de 2017

Guloseimas



Sei que estas palavras podem vir a dar jeito uma vez que nos chateemos. Mas não vou esperar por esse dia. Há muito tempo que não escrevo porque a necessidade de fazê-lo sobressai com o sofrimento. Uma força incontrolável ordena que os sentimentos pesarosos dêem lugar às palavras bonitas, ainda que sabotadas pela frustração.

Se isso hoje não acontece tão regularmente posso agradecer ao meu chocolate. O meu chocolate - concordemos em concordar chamar-lhe assim - é à mulher que eu amo.

A história de amor com o meu chocolate não é diferente de outras tantas histórias, embora todas se achem o arquétipo da celebração do amor. Sou eu, o meu chocolate, e uma sinergia incrível entre dois seres humanos diferentes com muita coisa em comum.

O meu chocolate transformou a minha vida: controlou os meus anseios, estabeleceu as minhas prioridades, tirou-me as incertezas e ensinou-me a amar de novo. Perdão, redefiniu a minha concepção de amar.

Ainda não tive oportunidade de parar para pensar o quão orgulhoso é suposto estar por ser amado pelo meu chocolate. O quão orgulhoso é suposto estar por ter a oportunidade de amar, sem limites, um chocolate que sabe tão bem.

Sei que peca por azeitice chamar sol à cara-metade (assim como usar a expressão cara-metade), no entanto, o meu chocolate é o meu sol. Além da luz que torna os meus dias mais alegres, o meu chocolate também é o meu sol porque é à sua volta que eu giro. Com tanta luz e calor, só espero que o meu chocolate não derreta.

Devido ao meu chocolate, voltei a escrever. Sem desilusão , frustração ou outro sentimento negativo terminado em -ão. Nunca nada fez tanto sentido como amar um chocolate.


quinta-feira, 15 de setembro de 2016

A Quimera do Sonho


Chegou a hora. A hora para muita coisa. Para regressar à rotina de amar e escrever e de escrever a sofrer, para me sentir outra vez. Parágrafo. 

É incrível a quantidade de vezes que prolongamos os nossos desassossegos no submundo do sonho. Assola-nos a incerteza de sonhar o desejado, de expurgar os fantasmas em forma de pesadelos ou de nem acontecer nada, ignorando benevolentemente a passagem do tempo. O primeiro é inquestionavelmente mais prazeroso. Dissimulado no presente, acalenta uma possibilidade num futuro que é somente uma página em branco a implorar para ser escrita.

Finalmente tu. Foram tantas as vezes que cobicei tão desmedida irrealidade. Mais real do que os filmes por quais vais chorando. Sem câmaras, com personagens reais. E tudo melhor que num filme. Tem cor, sabor, desejo e amor. Sente-se na pele. Sai da pele. Nesse espaço abstracto do sonho idealizei tudo assim. Dois corpos suavemente fundidos num abraço sentido, um beijo no canto da boca. Beijei-te. Abracei-te. Beijei-te. Abracei-te. Assustada por razões inerentes à imprevisibilidade do sonho, choravas. Ali, tão só, no meio da gente que dançava energicamente à volta daquele mastro inventado, numa noite de Santo António, choravas. Nunca houvera ali um mastro, nem baile, nem tão pouco Santo António, mas continuamos a dançar ao ritmo de um amor imaginado, num sonho fantástico. 

Não moravas longe, e mesmo a pé, levei-te para prolongar este sonho e dormir descansado. Até a sonhar pensava em dormir para sonhar contigo. Conversamos até que as lágrimas cessassem para que o sorriso aparecesse. Mais belo que nunca, soltou-se ao mesmo tempo do sol que ia nascendo, trépido. Uma noite acordado a dormir para contemplar este cenário. Missão cumprida, podia acordar.

Belisquei-me para ter a certeza que estava acordado. Doeu, estava mesmo. Triste fado aquele em que os sonhos não encerram premonições do futuro, mas antes manifestações inconscientes de alegrias, tristezas e outras banalidades que se expressam indomavelmente noite após noite. Riem, choram, gritam, têm vida própria. A tragédia, porém, sucede-se no acordar. Não por ser apenas um sonho, não por ser impossível de realizar. O desejo de viver o sonhado estranha-se mas depois entranha-se obsessivamente. Vai ter de acontecer outra vez. Acordado ou a dormir. 


quarta-feira, 4 de maio de 2016

O Amor Não Nasce Nas Árvores



Há uma árvore no meu jardim. Passei por ela tantos dias e nunca parei para contemplá-la. Não me cativava os frutos que sustentava, nem a atmosfera que a envolvia. Num dos dias que por ela passava, vá-se lá saber porquê, olhei-a com olhos de ver. Tinha um fruto novo a despontar, pequenino mas irreverente, e adivinha-se vir a ser o meu rei daquela árvore.

A partir desse dia, todos os dias observava o fruto a crescer. Levei um banco de casa e tanchei-o na terra seca, mesmo à frente dele, sem medo que ele me visse. Durante muito tempo associei aquele fruto ao amor, e via-o como a metáfora perfeita dessa cólera comum aos humanos. Germina, cresce, enforma, cai ou é apanhado e, por fim, não é mais do que uma finta ao apetite.

Até nos frutos, os mais bonitos nem sempre são os mais saborosos. Assim como os mais saborosos nem sempre são os mais bonitos. Mas um fruto podre será sempre podre, disso mantenho as certezas. Sempre que antes passava por aquela árvore, do tempo que gastava a ver o que fazia crescer, preferi sempre os frutos mais bonitos, mais lustrosos e apelativos, e foram esses que nunca lá prenderam depois do sol-posto.

Não é proibido, mas o perigo orbita aquele fruto. Pode ser o medo de não ser tão saboroso quanto eu penso que seja, de estar verde e talvez azedo. E nesse caso, além da reles imagem com que ficaria, não podia amá-lo mais, porque já não existia. Por outro lado, não posso esperar que caia de maduro, porque a queda pode causar danos a tão precioso pedaço de natureza.

O jardim é só meu mas os saltimbancos da fruta andam sempre à espreita e o risco de alguém o apanhar e comer antes de mim é permanente. Que tragédia seria desejar tão energicamente alguma coisa e alguém fruir dela antes de mim.

Cada dia que procrastino a indecisão, o sentimento agrava-se tragicamente. As pernas tremem, e não fosse o banquinho, já nem forças tinha para me segurar de pé. A boca abre-se mas não profere palavras, o sol não queima, o frio não gela, o tempo não pára e o fruto continua ali, pendurado. Balança com o vento mas com o meu sopro nem abana. Cobiço dia e noite a árvore mãe daquele fruto. Nada acontece. E nada pode acontecer, porque ao contrário de quem sente, os frutos não dão sinais de quando é que querem ser apanhados.


quarta-feira, 9 de março de 2016

Nós Sonhamos, Existimos.


É tão frequente esquecer-me do que sonhei quanto as vezes que me esqueço de ser feliz. Duas coisas que gosto verdadeiramente: Sonhar e ser feliz. Não basta uma para a outra acontecer – todos o sabemos – mas perdoem-me o cliché, “sonhar não custa”. E hoje o meu prorrogou-se no dia, não me esqueci dele.

O sonho não é só um sonho. É uma manifestação esquizofrénica do subconsciente, um desejo a pedir para existir. Raramente fazem sentido, mas o Homem nunca faz tanto sentido como quando sonha. Porque é mais honesto quando o faz, quando o egoísmo e o mal não coexistem, quando a realidade não é escamoteada pelas vicissitudes contemporâneas do Mundo, quando os ouvidos são moucos e o coração tagarela. Somos nós, em estado puro.

De pé, deitado, acordado ou a dormir, já sonhei muito. Já imaginei pessoas, cenários mirabolantes, poesia e amor, amor sem poetas e sensações extraordinariamente antagónicas. Também já acordei em sobressalto beliscando o braço para convencer-me que era só um pesadelo. Mas foram poucas as vezes que o sonhado se ajusta tão justamente à realidade da minha bolha. Desta vez não acordei, deixei fluir o desespero.

E fez-me pensar. Se partilho a ira do personagem (eu, quem sabe), não há como lutar. Dar asas à resiliência que mora em mim antes de ser tarde e a realidade não ser mais imaginada. Sonhar-te ali, sem mim e com quem não te queria ver, tocou as campainhas do medo. O riso despido, o ar tonto, a volúpia da voz, o olhar túmido, a ingenuidade meiga, o toque leve, desse leve espírito. O resvalo nessa quase-perfeição polarizada fez-me ver que saíste de um sonho meu, foste sonhada. Quando estava bem acordado.

Isto não foi um pesadelo, foi um abre-olhos.



quarta-feira, 2 de março de 2016

Ensopado de Gustavo Santos (Um Obrigado Camuflado)


Parvo. Ontem fiz anos e pensava que ia ter um dia diferente. Os dias de aniversários esgotantes ficaram na infância e perderam-se nas gerações. A bolha em que vivemos não nos permite meter o pé em ramo verde e já se vê a parabenização como uma obrigação diária – “Ora deixa cá ver a quem é que tenho de dar os parabéns hoje” – A tarefa simplificou-se com as redes sociais que por um lado lembram os mais esquecidos, mas que por outro promovem uma construção de irrealidades gritantes. Deixamo-nos envolver, porque um dia somos nós, e ontem fui eu. E sabe bem ter um dia só nosso, emergir da bruma e perceber que ainda há quem goste de nós. O meu dia não foi especialmente bom, vi coisas que preferia não ver, perdi um jogo de futebol e deitei-me tarde, cansado.

A sagacidade das espécies evoluiu no sentido da busca incessante da felicidade. Por conseguinte, a resolução de problemas é o método para ser atingida. Os meus problemas são necessariamente diferentes do resto do Mundo, seja ele ocidental ou não. Foi cansado, no sofá a ver televisão que vi uma notícia sobre a possibilidade real de Donald Trump se tornar presidente Americano e um documentário sobre o flagelo do Cancro. Aparentemente tem pouco em comum, e nem Trump com cancro seria elo de ligação aqui. Pergunto-me se não serão as vidas de quem tem cancro e respectivos familiares bem piores que a minha? Não estarão os Estados Unidos a afundar-se no meio do pacífico se elegerem Trump? Não será melhor a minha vida do que todos os futuros repatriados? Se for eleito, e enquanto as políticas extremistas de direita não incomodarem este cantinho à beira-mar plantado, a minha vida será boa. E continuará boa enquanto família e amigos, esses que importam, permanecerem ao meu lado. E boa não é ser feliz, é tentar ser menos angustiado, sentir-me menos derrotado por esta bolha viciada. Estes aniversários, que já só celebram o afastamento dos melhores anos, acabam invariavelmente em reflexões pessoais. Quantas pessoas já fiz rir, quantas pessoas já fiz chorar? Já fiz alguém feliz, já fiz alguém verter lágrimas, de emoção ou tristeza? Poucas, algumas ou muitas vezes? Vivo para mim ou vivo dos que gosto? Já fiz alguma coisa relevante para o Mundo? O eco destas perguntas propaga-se infinitamente nos espaços mais moribundos do cérebro e do coração. Hemingway escreveu que raros são os inteligentes felizes. É a verdade mais absoluta do Mundo, mas essa é a volúpia da vida, a pornografia de estarmos vivos. Um obrigado muito sentido a todos os amigos e família, um obrigado inevitavelmente menos sentido aos simpáticos que, mesmo na condição de meros conhecidos, se esforçaram por fazer mais uma pessoa feliz, e parabéns aos que se contiveram e não cederam à pressão de parabenizar alguém que só sabem quem é. Obrigado a todos, estou um dia mais velho.